Artigo publicado originalmente no boletim francês "Paix liturgique" (carta nº 840, de 24 de dezembro de 2021), disponível na página Riposte catholique.
Tradução de F. L. Brustolin, nosso colaborador.
Recentes medidas romanas a respeito da Liturgia tradicional: uma floresta de paradoxos
Por Padre Laurent-Marie Pocquet du Haut-Jussé, teólogo e canonista
As respostas feitas pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos [ndt: ele se refere às respostas publicadas em 18 de dezembro de 2021],
bem como a crise litúrgica provocada pelo motu proprio Traditionis custodes [de 16 de julho de 2021] trazem à
tona um certo número de paradoxos muito instrutivos para pastores, teólogos e canonistas.
Paradoxo moral: Desde 1988, a Igreja reconheceu, através da voz de seu supremo pastor,
a existência e a legitimidade do apego de muitos fiéis à liturgia tridentina, e foram
tomadas medidas para facilitar a comunhão desses fiéis. Ao abruptamente pôr um fim a
essas benevolentes (mas também justas e lógicas) disposições, a autoridade quebra essa
confiança e manifesta que se torna, assim, moral não respeitar a palavra dada.
Paradoxo teológico: No espaço de alguns anos, o Magistério afirma duas coisas
contraditórias. Bento XVI afirma, com autoridade, um princípio teológico fundamental e
indiscutível no que diz respeito à Tradição: “Aquilo que para as gerações anteriores era
sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso
totalmente proibido ou mesmo [considerado] prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar
as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar” [1].
No entanto, podemos inferir a partir das [recentes] medidas disciplinares o princípio
doutrinário que parece ser perfeitamente contraditório ao enunciado pelo Papa Emérito,
a saber: que aquilo que contribuiu para a santificação de uma multidão incontável de
batizados e para a edificação da Igreja deve ser considerado, hoje, como perigoso ou
prejudicial. Essa reviravolta magisterial, apenas alguns anos depois, testemunha uma
perturbadora desconexão entre teologia, história da doutrina e disciplina.
Paradoxo canônico: De acordo com uma concepção natural do direito, esse existe para
proteger o direito das pessoas, primeiramente o dos católicos. Sem voltar às medidas
disciplinares tomadas pelo Papa São Pio V (medidas que nunca foram revogadas), sem
discutir a lei do costume que se aplica a todo batizado, leigo ou clérigo, é evidente que
um direito foi reconhecido aos fiéis ligados à forma perene da liturgia. Agora esse direito
foi violado, desprezando a dignidade dos batizados. A “Igreja sinodal”, “inteiramente a
serviço da comunhão eclesial”, perdeu toda a credibilidade.
Paradoxo eclesial: Os pastores são convidados a desenvolver uma pastoral de
“acompanhamento”, aberta a todas as situações morais e psicológicas. Eles devem
praticar uma acolhida incondicional; mas existe uma parte do povo de Deus a quem
essa acolhida benevolente é obstinadamente recusada. O estabelecimento de um
verdadeiro apartheid litúrgico (nada de Missas tradicionais nas igrejas paroquiais, sem dúvida
por medo de contágio ou mau exemplo!) manifesta o rosto de uma Igreja desconfiada, madrasta, a quem se deve "apresentar os papéis" [ndt: no sentido de "identificar-se ao policial para não ser preso"] sob pena de ser expulso e ter que procurar
uma caverna, pois não há lugar para os fiéis tradicionais na estalagem. Em resumo, que
feliz Natal! [ndt: a publicação original data de 23 de dezembro]
Paradoxo psicológico: Pode-se perguntar se as autoridades litúrgicas não estão fazendo
tudo para tornar a reforma litúrgica odiosa! Esse autoritarismo, essa ignorância dos
princípios do desenvolvimento homogêneo das regras e tradições litúrgicas, essa
insistência em impôr o que é apenas uma etapa desse desenvolvimento (uma etapa que se
pretendia estar em sintonia com as aspirações sociais da década de 1960), essa recusa de
diálogo, essa incapacidade de fazer um balanço missionário das reformas levadas a cabo
há quase sessenta anos, essa cegueira para o colapso da fé no Ocidente (é preciso lembrar
que nunca experimentamos uma crise de vocações por um período tão longo em nossas
terras?), tudo isso parece bastante incompreensível, até mesmo totalmente suspeito,
revelando a consciência culpada de uma liderança eclesial que falhou. É uma pena ver tal
implacabilidade contra um grupo eclesial certamente minoritário, mas fervoroso e
missionário, um grupo que não contesta nenhuma verdade revelada e ensinada pelo
Magistério infalível da Igreja, e que procura viver todas as exigências do ensinamento
espiritual e moral da Igreja.
Sair da crise? Último paradoxo: É, sem dúvidas, possível, através do ensinamento e da
práxis do Papa Francisco, sair da crise. Em julho de 2015, o Santo Padre convidou os
jovens latino-americanos a “bagunçar as coisas”, mas essa mensagem se aplica aos jovens
católicos do mundo inteiro. O que caracteriza o movimento tradicional na Igreja é, de
fato, a juventude de muitos de seus membros. Cabe-lhes, portanto, mostrar ousadia e
impertinência contra o conformismo convencional, veiculado em muitos lugares, pelas
novas formas litúrgicas, e [trabalhar] pelo direito que têm de promover sua identidade. [...] Da mesma forma, o atual Papa não deixa de castigar o legalismo, o fascínio pelas normas,
o medo da aventura e do risco daqueles que sempre se escondem atrás de regulamentos e
estruturas de governo. Pois bem, isso lança uma severa luz sobre a avalanche de normas
paralisantes que procuram neutralizar ou mesmo eliminar uma realidade ao mesmo tempo
nova e antiga na Igreja. Essas normas devem, portanto, ser julgadas à luz da teologia
moral, dos direitos das pessoas e do verdadeiro bem dos fiéis.
Por fim, outra contribuição do Pontífice: em junho de 2019 ele recordou a necessária
liberdade dos teólogos. Certamente não se trata de questionar o Evangelho, a Tradição e
o depósito revelado. Pelo contrário, as medidas disciplinares tomadas contra a liturgia
devem agora ser objeto de um exame verdadeiro, a partir da indispensável avaliação de
que acabo de falar.
[1] Bento XVI, Carta aos Bispos que acompanha a Carta Apostólica "Motu Proprio data Summorum Pontificum sobre o uso da Liturgia romana anterior à reforma de 1970, in AAS 99 (2007) 798. 7 de julho de 2007.
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